terça-feira, 23 de agosto de 2011

Grandes (Pessoa)

 Grandes são os desertos, e tudo é deserto.  
 Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto  
 Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.  
 Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes  
 Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,  
 Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 
 Grandes são os desertos, minha alma!  
 Grandes são os desertos. 


 Não tirei bilhete para a vida,  
 Errei a porta do sentimento,  
 Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.  
 Hoje não me resta, em vésperas de viagem,  
 Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,  
 Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,  
 Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)  
 Senão saber isto:  
 Grandes são os desertos, e tudo é deserto.  
 Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 


 Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar  
 Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)  
 Acendo o cigarro para adiar a viagem,  
 Para adiar todas as viagens.  
 Para adiar o universo inteiro. 


 Volta amanhã, realidade!  
 Basta por hoje, gentes!  
 Adia-te, presente absoluto!  
 Mais vale não ser que ser assim. 


 Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,  
 E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 


 Mas tenho que arrumar mala,  
 Tenho por força que arrumar a mala,  
 A mala. 


 Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.  
 Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.  
 Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,  
 A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 


 Tenho que arrumar a mala de ser.  
 Tenho que existir a arrumar malas.  
 A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.  
 Olho para o lado, verifico que estou a dormir.  
 Sei só que tenho que arrumar a mala,  
 E que os desertos são grandes e tudo é deserto,  
 E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 


 Ergo-me de repente todos os Césares.    
 Vou definitivamente arrumar a mala.    
 Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;   
 Hei de vê-la levar de aqui,  
 Hei de existir independentemente dela. 


 Grandes são os desertos e tudo é deserto,  
 Salvo erro, naturalmente.  
 Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 


 Mais vale arrumar a mala.  
 Fim.

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